quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Pensei muito antes de engravidar e já sabia de algumas adaptações que deveria fazer na minha vida, para a inserção do meu tão esperado filhote. Topei tranquila, queria muito meu gordinho pra cobrir de noite, queria muito porque sim, sabendo que seria a primeira decisão irracional de uma sequência delas, porque eu já sabia que toda mãe é irracional.
Mas em nenhum momento li ou ouvi falar dos efeitos colaterais da gravidez. Já escrevi aqui como foi difícil me adaptar à vida sem a pílula, que tomei por dezoito anos. Foi um ano sem pílula até engravidar. Grávida, a felicidade foi plena, sensação maravilhosa de realização de sonho, andar nas nuvens, tudo lindo e brilhante. Até que começaram os enjoos. Não, não eram enjoos matinais. Eram 24 horas por dia tentando segurar o vômito. Para conseguir driblar o enjoo, entendi que deveria comer alguma coisa o tempo todo, a cada vez que o enjoo retornasse. Isso poderia variar o tempo e u estava comendo a cada hora, ou meia hora. Sempre que o enjoo voltava, eu comia mais um pouco. É claro que não comia qualquer coisa, a grande maioria das comidas me davam mais enjoo. Dava pra comer biscoito de polvilho, frutas mais firmes e frescas – jamais cremosas do tipo banana, abacate ou manga – e no almoço arroz com ovo ou macarrão na manteiga. Sim, o enjoo durou cerca de dois meses seguidos, sem trégua, nem pra dormir. Se eu acordasse às duas da manhã pra ir ao banheiro, tinha que comer alguma coisa pra distrair o estômago e ele não me perturbar.
Logo no início da gravidez, meu cabelo começou a crescer muito. Mil fios novos, curtinhos perto da cabeça, fazendo um volume muito estranho. O restante do cabelo, que sempre foi oleoso e fácil de cuidar, ficou ressecado, duro e mais enrolado. Comprei um milhão de cremes e me acertei com um sem enxague, pra domar a juba depois do banho. Teve também o fato de não poder pintar o cabelo. Já tinha lido por aí que é possível usar tonalizantes e achei que isso resolveria meus brancos precoces. Sim, mas não tinha a informação de que só é seguro depois de meados da gravidez e nos primeiros meses eu ficaria vendo uma grisalha no espelho. Dizem que depois que a criança nasce o cabelo cai bastante. Agora eu sei, estou preparada para isso, e até aguardando este momento de remover a peruca de Playmobil. Can’t wait!
Agora vamos para a pele. Desde que parei a pílula, minha pele já não estava mais a mesma. Ao engravidar, minha pele surtou, principalmente nas costas. Não tinha um pedaço de pele onde eu pudesse por a ponta de um dedo indicador que não tivesse uma espinha inflamada. Eram vulcões doloridos e coçava, porque a pele estava também muito ressecada. Fui a uma dermatologista e ela me recomendou um produto. Esperei o período permitido chegar para iniciar o tratamento e, ao longo de dois meses, já estava bem melhor, restando somente marcas escuras a cicatrizar.
Neste primeiro trimestre, tentei trabalhar o máximo que pude. Nunca esteve nos meus planos diminuir o ritmo de trabalho tão cedo, afinal nem barriga tinha pra atrapalhar, seria desculpa de preguiçosa, frescura e mimimi. É, mas quem consegue produzir estando o tempo todo com a sensação de ter comido cachorro quente estragado na praia?
Lá pela 14º semana, iniciando o quarto mês da gestação, minha vida melhorou muito. Senti que estava de novo energizada, e me animei para novos trabalhos. A workaholic aqui se iluminou, na possibilidade de exercer o que tanto gosta, trabalhar! Peguei um projeto que tinha feito um mês antes para revisar só um item e quando abri, tomei um susto daqueles! Havia um punhado de falhas, esquecimentos, coisas de quem produziu o que deu pra produzir na situação em que eu estava. Revisei tudo, alterei, ajeitei. Tudo certo, a revisão veio para o meu bem.
Senti que estava produtiva de novo, que liberdade, que maravilha! Uma barriga pesadinha na frente não é problema. E com 23 semanas, venho aqui hoje para escrever um texto lembrete a fim de que, no futuro, eu não me esqueça das questões do presente gestacional. Digo isso porque percebo claramente que meu cérebro não tem funcionado como normalmente e a memória instantânea está prejudicada. Desta forma, essa semana aconteceram coisas estranhas na minha vida.
Um dia estava trabalhando e começou a chover. Fui à janela fechar e por instantes não sabia o que fazer com a janela, não lembrava como funcionava o sistema de travamento. Depois de alguns segundos, me lembrei de que era só girar uma peça. Outro dia, pela manhã, estava fazendo um café. Perdi o pó de café. Procurei no armário, na prateleira, não achei. Quando desisti, olhei pra bancada e estava lá. Eu já havia colocado o pó na bancada antes, mas não me lembrava. Ontem fui preparar um jantar, coloquei a comida na travessa e cobri pra levar ao forno. Em vez de usar papel alumínio, usei filme de pvc e já ia colocar no forno quando pensei que aquilo ia dar errado, derreter tudo e emplastificar a comida. Troquei por papel alumínio e deu certo.
Hoje, tentando trabalhar e sem conseguir me concentrar, tentei o último dos recursos, que uso em momentos de desespero: rezar uma Ave Maria. Chegando à parte do “bendito é o fruto do vosso ventre” me distraí com o trava-línguas “fruto do ventre”, pensei no fruto do meu ventre e aí esqueci o resto do texto. Só me restou rir muito e alto, sozinha no escritório e parar pra escrever este texto.
Este está sendo o momento. Isto me gera medo, porque eu não estava preparada para ter a capacidade produtiva diminuída antes do nascimento do meu bebê. Não é mimimi e agora sei que muitas grávidas passam pro incômodos ainda maiores, como dores nas costas, varizes nas pernas, alergias, incontinência urinária e uma série de sintomas normais, fora aquelas que tem sérios problemas na gestação. Sei também que o último trimestre está batendo na minha porta e que o normal é ser a fase mais difícil. Estou preparada. Eu acho. Depois ainda temo puerpério.
Vejo que o último trimestre deve ser levado com cautela no que se refere a trabalho. O mais prudente seria não assumir nenhum compromisso irreversível pois, pela primeira vez na vida, meu corpo é absolutamente imprevisível e me controla. Aliás, tem o corpo de uma outra pessoa dentro do meu e isso é bem mais complexo do que parece.
Apenas preciso salientar que sou de touro e sou uma tora: grande, forte, lutadora. E pensar em um tempo produzindo menos, o que significa, para quem empreende, receber menos retorno financeiro, me dá calafrios. Estou fazendo todo o possível para não precisar de ajuda financeira do marido. É uma questão muito séria para mim, mas vejo que pode ser necessário, o que pode me requerer uma humildade a ser desenvolvida. Aceitar que não sou a mulher maravilha pode não ser nada fácil para uma pessoa que se constituiu como pessoa com forte a poio na profissão e na independência financeira, desde bem cedo na vida.
O que eu pretendo é registrar aqui estes incômodos para que, caso eu esqueça tudo isso como dizem que todas esquecem, eu tenha este texto como um post it. Quando eu vir meu fofuxo lindo sorrindo banguelo pra mim e tiver vontade de ter mais um, que eu me lembre de tudo isso e o faça com consciência, ou não faça, conforme achar melhor na época.

Vamos lá, para a próxima etapa. E a tal da maternidade é muito mais transformadora do que qualquer um possa imaginar. Ave Maria! Ah, parece que a palavra “ave” é uma saudação, que pode ser traduzida como Salve Maria! Não vou nem tecer mais comentários.

Minha experiência com a felicidade


Minha relação com a felicidade sempre foi um pouco nebulosa. Não é tão fácil assim reconhecer a felicidade. O lugar dela é ali, no espelho, diante do rosto inchado ao acordar, mas para identifica-la, é necessário compreendê-la.
                Fui uma criança feliz. Fui muito bem nutrida de amor pela minha família. Tive uma mãe incrível, que sempre foi e ainda é a rainha do tempo. Dava aula três turnos, mas foi inteiramente presente na minha vida e na do meu irmão, sabe-se lá como. É a melhor administradora de tempo que eu já conheci. Meu pai era muito carinhoso e meu irmão a pessoa mais companheira do mundo. Mas quando ouço aquela história de “ser criança é que é bom, eu era feliz e não sabia”, acho isso uma grande balela. As crianças têm muitas dificuldades, tanto quanto os adultos. Apenas agem naturalmente, com muita energia para aprender as tão complexas tarefas da vida. Aprender a comer sem espalhar a comida pelo chão não é fácil. Lembro claramente de, sentada à mesa de almoço, olhar os grãos de arroz no chão e pensar “até quando?”. Parar de fazer xixi na cama é muito difícil. A cada xixi foi uma decepção, uma tristeza de parecer que nunca estava pronta para tomar o controle do meu corpo. Aprender a escrever corretamente, a viver em sociedade, a se relacionar com os outros, a entender seus próprios limites, enfrentar os medos, aceitar desafios, isso tudo parece fácil depois que já passou. Na hora não é simples, mas não desintegra a felicidade, porque a gente quer vencer.
                Foi só entrar para a adolescência que a depressão começou a mostrar suas asinhas. Tendo o básico aprendido nesta fase, já com onze anos, faltava uma razão para existir. Comecei a entender um mundo a minha volta muito diferente de mim e muito cruel. Ao contrário do que mostrava minha família, que até então era o principal núcleo da minha vida, eu não era especial, as pessoas não me amavam, o mundo não precisava de mim e não fazia a menor questão da minha presença. Pelo contrário, eu dava trabalho a muita gente e despesas financeiras à minha família. Vazio, dor, angústia e a primeira experiência de me saber uma pessoa única no mundo, com toda a minha esquisitice. Inadequação, estranhamento, repulsa, introspecção, tristeza, solidão. Um corpo novo, absurdamente inapropriado, inconveniente e incômodo se instalava. Eu me sentia enorme, inflada como um balão, atrapalhando o funcionamento da cidade. O bichão da depressão já estava sentado na minha mesa.
Já tinha uma personalidade bem definida, mas descobri que o mundo não queria essa pessoa. O mundo queria que eu fosse meiga, fofa, sorridente, simpática, dançasse musiquinhas do rádio e soubesse rezar direitinho. Tentei muito ser assim para agradar o mundo. Era inútil. Tentei frequentar a igreja, mas era horrível. Sentia-me passando num moedor de carne, como no filme The wall. Lavagem cerebral não me pegava de jeito nenhum. Resisti bravamente a tudo, mas isso me corroeu. Aos treze anos tive uma úlcera gástrica, não dava pra engolir tudo isso sem me machucar. 
Via outras pessoas sendo felizes e tinha inveja. Muita gente me falava aquelas frases clássicas que todos que já tiveram depressão ouviram. “Anima, levanta, dá uma volta na rua, olha o sol, vai pra igreja, Jesus te ama, isso é rebeldia sem causa, aborrecência”. Sorte daqueles que tem a adolescência agradável, a minha não foi nem um pouco.  De vez em quando tentava umas empreitadas de felicidade, e nessas descobri que o álcool me dava alguns momentos de alegria. Passados estes momentos, a tristeza voltava com força total. Era inútil.
No último ano do colégio cheguei ao limite. Aquilo estava me deixando doente e eu tinha que tomar alguma atitude. Decidi desistir de contestar e iniciei a arte de rir daquilo que não se pode mudar. Esse é um aprendizado importantíssimo, mas para chegar até ele foram necessários alguns anos de sofrimento. Já era o primeiro sinal, mas ainda não sabia nesse tempo que a doença é parte da saúde. A crise é fundamental para a iniciativa da mudança.
A partir daí, não foi tão difícil mais e, entrando para a tão sonhada faculdade de arquitetura, minha função do mundo já estava dada. O drama da minha família, como a de muitas famílias brasileiras, de nunca conseguir ter uma casa, poderia ser compensado, construindo edifícios para o mundo, abrigando as pessoas e realizando os sonhos delas. Realizar sonhos era o meu sonho! Em seis meses de curso eu já estava morando sem meus pais, apenas com meu irmão parceiro de todos os momentos, estudando em uma universidade pública sem custo e me sustentando parcialmente. Enfim, todo o incômodo que causava, todo o trabalho que eu dava, estava bem minimizado. A partir desse momento, o foco era aprender tudo quanto pudesse para ser adulta e independente, uma pessoa de sucesso. Mergulhei de cabeça, coloquei toda minha energia naquilo e foi felicidade plena. Problemas financeiros eram muitos e por vezes paralisantes, mas o objetivo estava claro e a arte de rir de mim mesma já estava treinada.  Foi nessa hora que ficou muito cristalino o fato de que a felicidade passa longe, a quilômetros de distância da realização financeira. Sucesso financeiro é ótimo, mas é um item de alegria, não é felicidade. Traz tranquilidade para seguir em frente, mas é possível passar dificuldades financeiras com felicidade, basta saber traçar um plano pra sair da dificuldade e ir atrás dele. Assim, todos os percalços do trajeto até a solução ganham significado e valem a pena.
Mas uma hora a faculdade acaba, a gente forma e cai no mercado de trabalho.  Neste momento eu já era financeiramente independente, não dava mais trabalho e já até ajudava a família em alguma coisa. A angústia da falta de função no mundo e de ser um peso para a família estava exterminada. Mas eu sabia que a luta pela vida só estava começando. Não bastava ter profissão, eu tinha que ter sucesso, tinha que trabalhar muito, o máximo que pudesse, tinha que ter dinheiro, conhecer o mundo e disfrutar da juventude. Foi aí que eu me enganei. Ter um milhão de amigos, trabalhar 16 horas por dia, estar em todas as baladas da cidade, isso não é felicidade. Isso é histeria. Mas eu ainda não sabia e achava que tinha a obrigação de ser muito feliz, viver intensamente, virar o pescoço pra trás de tanto rir.
E foi assim que os amigos foram se distanciando. Cada um por seu motivo, creio que se concentrando na sua vida profissional e pessoal e caminhando. E tive que encarar a minha solidão mais uma vez. Percebi que ter amigos, ter família, ser rodeado de pessoas é muito bom, mas elas estão do lado de fora. Dentro, todo mundo é sozinho e nu. Ninguém pode resolver os problemas, a não ser essa solidão despida que aparece no espelho pela manhã. E foi aí que o bichão voltou a sentar na minha mesa.
Mas dessa vez eu tinha uma vantagem. Quando olhei pra cara do bicho reconheci a pelagem densa e marrom. Era ele mesmo. Procurei todos os caminhos para mandá-lo embora e, depois de diversas tentativas diferentes, consegui. Ele é danado, mas eu sou mais. E mais uma vez, a doença é parte da saúde e a crise é fundamental para transformar o pensamento e integrar os objetivos da vida. Com novos objetivos, tudo é limpo e todas as chances de vencer estão adiante. Tem cheiro de caderno novo, pronto pra receber história. E só tem uma pessoa apta a escrever.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Meu relato de parto
 
             Planejei muito minha gravidez. Pesei prós e contras de se ter um filho. Analisei, pesquisei na internet, com amigas, parentes e conhecidas.  Levei em consideração todas as possibilidades conhecidas e resolvi – resolvemos, claro – teremos uma criança. Logo no início da gravidez, meu filho mostrou a que veio: questionar minha necessidade de controle total das situações da vida. 
Tinha ouvido falar em enjoos matinais durante a gravidez e de mulheres que nem sentiam enjoo, mas aqui foi diferente. Nos primeiros três meses estava enjoada 24 horas por dia. Fui me percebendo e entendendo que o segredo era comer. Comer o tempo todo, sem dar trégua pro enjoo. Mas é claro que não era qualquer coisa, dava pra comer frutas frescas ácidas, biscoito de polvilho e arroz com ovo. Depois de adaptar, ficou tudo em ordem.
                Passada a temporada de enjoo, vieram uns tempos de falta de concentração.  E isso esbarrou no meu maior medo, que era de a gravidez alterar meu ritmo de trabalho. Os dias de falta de concentração foram só um susto rápido e aprendi a ser super eficiente no trabalho. Foi um aprendizado que vou levar pra vida! Com todo o medo de não conseguir, trabalhei até o último dia e ainda levo uns detalhes hoje, um mês depois do parto.
                Sempre acreditei que teria uma filha. Lacinhos, bolinhas, vestidinhos, tutu de balé, tudo isso parecia ser certo na minha vida. Foi a ultrassonografia que acabou minha fé em pressentimentos. Eles não existem, são só hábitos de projeção. Meu bebê veio homem, e entrou na vida sem expectativas, projeções ou pressentimentos. Veio como a pessoa que é. E vamos ao parto, que é o que interessa.
                Ao completar 40 semanas, fizemos a consulta pré-natal da semana e falamos sobre a possibilidade de indução, caso o bebê se demorasse além da 42 semanas previstas. Fiquei ansiosa, porque não queria já iniciar o parto com uma indução, mas estava aberta a qualquer intervenção que fosse realmente necessária.
                A DPP – para quem não está grávida, eu traduzo: data prevista para o parto , determinada sempre ao completar 40 semanas de gestação – era dia 21 de março. Nos dias seguintes era feriado de páscoa. Ficamos de molho em casa no feriado, concentrando, fazendo caminhada, tomando chá de canela, e qualquer coisa que pudesse me ajudar a atrair um trabalho de parto. O feriado passou e no domingo de páscoa acordei às seis da manhã com contrações doloridas. Oba, estoura kinder ovo, quero ver meu brinquedinho!
                As dores eram bem leves, com contrações a cada sete minutos.  Não tinha identificado nenhuma contração de treinamento durante a gravidez e, se não fossem as dores, acho que não identificaria até a hora do nascimento. Havia baixado um aplicativo para a marcação das contrações e usei enquanto as dores me permitiam ainda manipular um celular.  Toda alegre e satisfeita, alertei a equipe toda: Dr. Guilhermino , Miriam e equipe Bom Parto e Kalu. Galera, cortem a cerveja do domingo de feriado, hoje vai ter rock, bebê!
                Por toda a manhã, fiquei em casa, curtindo o momento, me jogando no clima, e fazendo caretas nas contrações. Rebolei na bola de pilates, tomei uns banhos quentes, ouvi as músicas que tinha separado na play list do parto, me alimentei bem.  Ainda consegui  almoçar uma comida bem leve, ainda que com certa dificuldade, pois as contrações já eram mais doloridas e o tempo entre elas mais curto.
                Chamei Miriam e Kalu, a coisa estava ficando intensa. Quando ela chegou, estava no momento feliz, entre as contrações. Quando a Miriam chegou, não consegui abrir os olhos pra vê-la, era o momento tenso da contração.  Então, Miriam colocou umas agulhas de acupuntura na minha orelha, para aliviar a dor, entre outras funções. Nessa hora, eu já nem queria saber que funções eram, faria o que a ela falasse que era bom. Durante as consultas de pré-natal com a Miriam e a equipe de enfermeiras obstetras, desde as 28 semanas de gestação, fomos desenvolvendo uma relação tão gostosa, e minha confiança era tão grande, que estava totalmente entregue àquela criatura linda que ela é. Como eu sempre digo: uma deusa, uma louca, uma feiticeira. Ela é demais.
                Em casa, doula e enfermeira me deram a real: ainda estava muito no início. Santa tolerância, Batman! E eu achando que estava na porta da partolândia! Foram embora pras suas casas pra almoçar e se refazer e no fim da tarde, Miriam volta à minha casa. Nessa hora, já estava berrando a cada contração. A bola de pilates, que imaginei ser tão útil no parto, me irritava, porque, além de sentir dor, tinha ainda de me equilibrar sobre a superfície esférica e mole. O chuveiro ajudava um pouco, mas os vizinhos já deviam estar escutando os berros de uma parturiente no silêncio da noite de domingo de páscoa.  A cada contração eu soltava um grito, Miriam apertava um ponto em cada perna, marido segurava nas minhas mãos. Bruno se ofereceu de corpo e alma e eu me agarrei a ele como nunca. Estávamos juntos na nossa empreitada eterna.
                A dor foi se intensificando a noite avançando, quando Guilhermino ligou pra gente. “Miriam, fala com ele que eu quero uma anestesia.” Ouvi as gargalhadas típicas dele do outro lado da linha. Desde as seis da manhã em dor, no final da noite, meu limite já estava se aproximando.  Tentamos mais um pouco permanecer em casa e pensamos que poderia ser bom ainda experimentar a banheira do quarto do hospital. Arrumamos tudo pra sair de casa, malinhas da maternidade em mãos, comecei a vomitar de dor. Já tinha ouvido falar em vomitar de dor, mas achava que era coisa pra quem tem estômago fraco. Mas não, era pra mim também.  Fomos pro hospital.  Chegando lá, Guilhermino já nos esperava, Kalu junto.  Na avaliação, eu nem lembro mais se a dilatação era 4 ou 6 centímetros, minha consciência já não estava lá essas coisas. Sei que pensei “putz, ainda demora muito. Socorro!”
                Entramos pra o quarto, já quis logo entrar na banheira. Quando a contração chegava, meu corpo boiava na água e eu me sentia insegura, sem firmeza, se ter a que me agarrar pra aliviar a dor. De repente boiou um elemento estranho na água, e Bruno arregalou os olhos,” o que é isso? “. Kalu, com o maior sorrisão, aliviou pra ele ”tampão mucoso, a gente adora tampão mucoso!”
Já havia passado da meia noite, e o domingo de páscoa se foi todo em esperança de conhecer meu eterno parceiro. Saí da banheira, fui pro chuveiro, que dava mais segurança.  O aquecimento da água do hospital era solar, então a água variava a temperatura de gelada a escaldante e aquilo ali não me aliviava mais nada. Foi aí que eu pedi a bendita anestesia. Achei que demoraria um pouco, mas rapidinho chegou o salvador com a injeção da alegria. Eu só não sabia que teria que ficar com mil esparadrapos nas costas travando meus movimentos. Mas ok, repousar meia hora após a anestesia foi revigorante. Quando acordei, a equipe me expôs a possibilidade de romper a bolsa, para acelerar o processo, para tentar compensar o efeito retardador da anestesia.  Miriam rompeu a bolsa com toda delicadeza que tem e escorreu um líquido escuro pelas minhas pernas. Surpresa, mecônio! Mas sem problemas, batimentos monitorados o tempo todo, bebê seguindo muito bem a maratona.
                Sentei e levantei da banqueta um milhão de vezes, aguardando sinais de desenvolvimento do trabalho de parto, até que a anestesia passou e recomeçaram as dores, agora muito intensas. As costas doíam muito, a barriga parecia implodir e o colo do útero em força de abertura me faziam vomitar o que não havia comido. A esta hora já estava sem me alimentar havia umas 20 horas e não tinha a menor disposição para isso.
                Pedi mais uma anestesia.  Meia hora de repouso depois da anestesia para um breve descanso, para quem estava sem dormir também havia cerca de 24 horas. Voltamos aos processos, mas essa anestesia não pegou bem os dois lados. O lado direito rapidamente voltou a ter sensibilidade, e a dor voltou, de um lado só, com força total. Chamamos o anestesista e ele, para concertar a assimetria, aplicou mais um pouco.
                Foram três doses. Já tinha passado de meio dia da segunda-feira. Kalu me perguntava pela vontade de fazer cocô e pelo círculo de fogo, clássicos do período expulsivo, e eu não sentia nada. Comecei a me sentir incapaz de parir, pensar mil coisas. Até que a Miriam, com toda doçura, disse “Tati, agora vai ter que nascer. Se não sair pela portinha, vamos ter que abrir uma janelinha”.      Chorei por dentro. Pensei que meu filho veio me mostrar que meu controle sobre a vida é muito limitado. Tinha me preparado tanto para o parto normal, contratei uma equipe super competente, fiz fisioterapia pra fortalecer períneo, li um milhão de textos, estudei tudo e mais um pouco para estar apta a parir e na última hora, não estava conseguindo. O efeito da terceira dose de anestesia estava acabando, não sentia a tal vontade de fazer cocô, nem o tal círculo de fogo. Deu vontade de desistir.
O médico chegou ao quarto e soltei “Guilhermino, desisto”.  Ele, como a pessoa mais bem humorada que já conheci solta o maravilhoso “hahaha, adora quando desiste, é sinal de que já está conseguindo! Vamos te avaliar”. Foi muito difícil permanecer deitada para a avaliação, mas foi rápido e certeiro. “Dilatação dez, colo 100% abatido e bebê no +1. Vai dar certo, o máximo que podemos precisar é passar um fórceps.” Chorei de novo por dentro, mas dessa vez de alegria. Ele propôs a ultima dose de analgesia e eu topei, é claro. Mas Miriam e Kalu me encorajaram a não tomar e tentar finalizar sem a dose. O combinado foi tentar por meia hora e, se não fosse suportável, pediríamos a última dose.
Quando comecei a fazer força durante as contrações, percebi que fazer a força aliviava a dor.  Com abanqueta sobre a cama, Guilhermino e Miriam na minha frente, e Bruno me abanando freneticamente à esquerda – porque eu suava loucamente - , enfiei a cara nos cachos da Kalu e dei tudo de mim. Não sei se tentei meia hora, nem sei se tinha alguma percepção de tempo nesse momento, mas estava no ponto final de toda a batalha pelo meu parto. Não demorou pra dar pra sentir a cabeça dele coroando e mais algumas forças e pulou de dentro de mim uma criança linda! Peguei no colo, nos olhamos nos olhos por alguns segundos. Não chorei, fiquei no espanto. Ele também não chorou, então a equipe o pegou para uns procedimentos. Esfregaram, aspiraram e ele ouvi o choro intenso do meu filhote. Voltou pro meu colo meu bebezão forte, como eu sentia por dentro da barriga. Já veio sabendo mamar com uma força impressionante. Toda a dor foi embora no segundo em que peguei meu filho no colo. Fiquei automaticamente energizada, animada, apaixonada por essa criança linda e especial, que vai me chamar de mãe, que há um mês virou minha vida e já me motivou a fazer coisas que há um mês diria que não faria. E foi dada a largada das olimpíadas de cuspir pra cima e acertar na testa!

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

3x4 Ploc Monster


Parei de tomar pílula anticoncepcional há quatro meses, num ato de coragem, abandonando a espera do momento ideal e enfrentando a situação para realizar aquilo que meu corpo animal quer desde que carregava boneca no colo, fingindo ser minha filha.  A entrega ao animal que existe em mim vem trazendo um cotidiano muito diferente do que vivi os últimos dezoito anos, quando, sem saber, domava meu demônio da Tasmânia com mini bolinhas de hormônio junto ao café da manhã.

Agora minha rotina é uma eterna reflexão e a adolescência voltou, com a diferença de que já a vivi uma vez e sei no que pode resultar determinadas atitudes que vier a tomar. Agora tenho seios grandes, o que me lembra do sonho da cirurgia de redução de mama, quando fui vítima da moda anos oitenta e noventa, no tempo em que até Chico Buarque já cantava aos peitinhos de pitomba tão almejados por mim e, com certeza, por outras meninas da minha idade. A diferença é que não preciso mais ser o que não sou, apenas comprei sutiãs maiores e mais estruturados e vou curtir meus seios de pinup assim que me acostumar com esse volume frontal que chega antes de mim nos lugares que frequento.

Tenho também pelos. Depois de ter sofrido dores horríveis para eliminá-los com laser, eles voltaram para me documentar pertencente à família Barbosa. Com barba para todo lado, é assim que somos. A sorte é que agora já tenho consciência de que não é necessário sentir dor com cera depilatória, pois ela não muda a constituição dos pelos e não vai um dia acabar com eles. Um charme de Frida Kahlo não faz mal a ninguém e está super in ultimamente.

Mini vulcões erupcionam na minha pele. Antes que um cicatrize outro já começa a inflar.  Faz-me rir, pois o vulcão interno que hibernava dentro de mim acordou com tudo e quer exterminar todo o reino animal, vegetal e mineral.

Meu dia começa com o despertador tocando, o que não acontecia há anos, enquanto vinha sendo desperta de disponível, animada a agir desde as seis da manhã sem maiores esforços. Levanto sentindo o peso dos novos seios e tenho que enfrentar a nova pele que habito e seus mini vulcões diante do espelho.

Durante o café tudo vai bem, a não ser pela falta de agilidade e a inércia que ordena “volte para a cama” enquanto obedeço à voz da humanidade dizendo “o trabalho dignifica o ser humano”.  É óbvio que este pequeno demônio da Tasmânia que despertou como um vulcão não deseja se alimentar de frutas e comidas leves, isso é coisa para a moça do comercial de leite em pó desnatado, que aposto que toma antidepressivos. Digo que aposto isso por experiência própria e a sensação maravilhosa é aquela mesmo, de correr na praia de roupas brancas e esvoaçantes, com o vento levantando os cabelos. Mas para o que eu pretendo esse recurso não é uma opção.

Assim tomo o café, tentando segurar as vozes do “volte para a cama” e do “coma mais um pedaço de pão”.  Meu humano consciente tampa os ouvido gritando lalalalalalá, enquanto vou tomar um banho e vestir roupas de trabalho. Ao banheiro posso perceber os contornos mais arredondados revelando as pequenas vitórias do leão que tenho tentado domar a cada dia.  Antes de sair, visto alguma roupa com a sensação de que esta nova eu deveria ter também novas roupas, mais condizentes com os novas formas e com o novo olhar. Tento secar o cabelo para dar um ar de maior beleza, visto que a pele oleosa e seus pontos vermelhos não ajudam muito meu sucesso como imagem. O calor do secador estimula a oleosidade da pele do cabelo e então eu tenho a certeza de que no fim do dia vou estar com cara de suada, o que também não vai ajudar. O mau humor se instala e torço para não cruzar com pessoas ao meu caminho. Prefiro permanecer muda. Cruzo com o marido no corredor, olho de rabo de olho. Desconfio de que ele percebe minha situação e temo perdê-lo por estar sendo uma pessoa muito difícil de conviver. Então ele sorri para mim, e me lembra de que ele gosta dessa pessoa estranha. Por isso, ele também me parece bem estranho.

Tento permanecer quieta para ser discreta diante do mundo. Entendo algumas coisas que me aconteciam na adolescência. Sair da sala durante a aula e me esconder na biblioteca para ler algo do meu interesse, me achar a pessoa menos gostável do planeta, ter um estranho prazer em ir para a região mais movimentada da cidade onde ninguém me ouve nem me vê. Querer ser invisível para poder ser o que sou sem incomodar a ninguém. Sabendo que esta que sou é a mesma que pode optar por interferir nos próprios sentimentos. Sou cada vez mais compreensiva diante dos monstros de outras pessoas, a cada vez que me deparo com os meus.

Penso em voltar a tomar as bolinhas mágicas no café e sentar em cima desses bichos que tem me atazanado. Mas a natureza insiste em interferir na minha vida e persistir na materialização do desejo constante de ser mãe, que não raro me parece uma ideia maluca.  Vejo na rua uma menina bem pequena, que ainda mal sabe andar firmemente, empurrando um carrinho com uma boneca dentro e me reconheço nela, treinando desde sempre para uma tarefa que ainda não chegou.  Espero com calma o dia de chegar e ouço por aí que o pior e o melhor ainda estão por vir.  O hoje é reconhecer os monstros, dar nome a eles,  uma cadeira à mesa e servir-lhes o jantar.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

I need you

terça-feira, 29 de junho de 2010

Piano

sábado, 12 de junho de 2010

Primeira foto