Parei de tomar pílula
anticoncepcional há quatro meses, num ato de coragem, abandonando a espera do
momento ideal e enfrentando a situação para realizar aquilo que meu corpo animal
quer desde que carregava boneca no colo, fingindo ser minha filha. A entrega ao animal que existe em mim vem
trazendo um cotidiano muito diferente do que vivi os últimos dezoito anos,
quando, sem saber, domava meu demônio da Tasmânia com mini bolinhas de hormônio
junto ao café da manhã.
Agora minha rotina é uma eterna
reflexão e a adolescência voltou, com a diferença de que já a vivi uma vez e
sei no que pode resultar determinadas atitudes que vier a tomar. Agora tenho
seios grandes, o que me lembra do sonho da cirurgia de redução de mama, quando
fui vítima da moda anos oitenta e noventa, no tempo em que até Chico Buarque já
cantava aos peitinhos de pitomba tão almejados por mim e, com certeza, por
outras meninas da minha idade. A diferença é que não preciso mais ser o que não
sou, apenas comprei sutiãs maiores e mais estruturados e vou curtir meus seios
de pinup assim que me acostumar com esse volume frontal que chega antes de mim
nos lugares que frequento.
Tenho também pelos. Depois de ter
sofrido dores horríveis para eliminá-los com laser, eles voltaram para me
documentar pertencente à família Barbosa. Com barba para todo lado, é assim que
somos. A sorte é que agora já tenho consciência de que não é necessário sentir
dor com cera depilatória, pois ela não muda a constituição dos pelos e não vai
um dia acabar com eles. Um charme de Frida Kahlo não faz mal a ninguém e está
super in ultimamente.
Mini vulcões erupcionam na minha
pele. Antes que um cicatrize outro já começa a inflar. Faz-me rir, pois o vulcão interno que hibernava
dentro de mim acordou com tudo e quer exterminar todo o reino animal, vegetal e
mineral.
Meu dia começa com o despertador
tocando, o que não acontecia há anos, enquanto vinha sendo desperta de
disponível, animada a agir desde as seis da manhã sem maiores esforços. Levanto
sentindo o peso dos novos seios e tenho que enfrentar a nova pele que habito e
seus mini vulcões diante do espelho.
Durante o café tudo vai bem, a
não ser pela falta de agilidade e a inércia que ordena “volte para a cama”
enquanto obedeço à voz da humanidade dizendo “o trabalho dignifica o ser humano”. É óbvio que este pequeno demônio da Tasmânia
que despertou como um vulcão não deseja se alimentar de frutas e comidas leves,
isso é coisa para a moça do comercial de leite em pó desnatado, que aposto que
toma antidepressivos. Digo que aposto isso por experiência própria e a sensação
maravilhosa é aquela mesmo, de correr na praia de roupas brancas e esvoaçantes,
com o vento levantando os cabelos. Mas para o que eu pretendo esse recurso não
é uma opção.
Assim tomo o café, tentando
segurar as vozes do “volte para a cama” e do “coma mais um pedaço de pão”. Meu humano consciente tampa os ouvido gritando
lalalalalalá, enquanto vou tomar um banho e vestir roupas de trabalho. Ao
banheiro posso perceber os contornos mais arredondados revelando as pequenas
vitórias do leão que tenho tentado domar a cada dia. Antes de sair, visto alguma roupa com a
sensação de que esta nova eu deveria ter também novas roupas, mais condizentes
com os novas formas e com o novo olhar. Tento secar o cabelo para dar um ar de
maior beleza, visto que a pele oleosa e seus pontos vermelhos não ajudam muito
meu sucesso como imagem. O calor do secador estimula a oleosidade da pele do
cabelo e então eu tenho a certeza de que no fim do dia vou estar com cara de
suada, o que também não vai ajudar. O mau humor se instala e torço para não
cruzar com pessoas ao meu caminho. Prefiro permanecer muda. Cruzo com o marido
no corredor, olho de rabo de olho. Desconfio de que ele percebe minha situação
e temo perdê-lo por estar sendo uma pessoa muito difícil de conviver. Então ele
sorri para mim, e me lembra de que ele gosta dessa pessoa estranha. Por isso,
ele também me parece bem estranho.
Tento permanecer quieta para ser
discreta diante do mundo. Entendo algumas coisas que me aconteciam na adolescência.
Sair da sala durante a aula e me esconder na biblioteca para ler algo do meu
interesse, me achar a pessoa menos gostável do planeta, ter um estranho prazer em
ir para a região mais movimentada da cidade onde ninguém me ouve nem me vê.
Querer ser invisível para poder ser o que sou sem incomodar a ninguém. Sabendo
que esta que sou é a mesma que pode optar por interferir nos próprios
sentimentos. Sou cada vez mais compreensiva diante dos monstros de outras
pessoas, a cada vez que me deparo com os meus.
Penso em voltar a tomar as
bolinhas mágicas no café e sentar em cima desses bichos que tem me atazanado.
Mas a natureza insiste em interferir na minha vida e persistir na materialização
do desejo constante de ser mãe, que não raro me parece uma ideia maluca. Vejo na rua uma menina bem pequena, que ainda
mal sabe andar firmemente, empurrando um carrinho com uma boneca dentro e me
reconheço nela, treinando desde sempre para uma tarefa que ainda não chegou. Espero com calma o dia de chegar e ouço por aí
que o pior e o melhor ainda estão por vir. O hoje é reconhecer os monstros, dar nome a
eles, uma cadeira à mesa e servir-lhes o jantar.
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