quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Pensei muito antes de engravidar e já sabia de algumas adaptações que deveria fazer na minha vida, para a inserção do meu tão esperado filhote. Topei tranquila, queria muito meu gordinho pra cobrir de noite, queria muito porque sim, sabendo que seria a primeira decisão irracional de uma sequência delas, porque eu já sabia que toda mãe é irracional.
Mas em nenhum momento li ou ouvi falar dos efeitos colaterais da gravidez. Já escrevi aqui como foi difícil me adaptar à vida sem a pílula, que tomei por dezoito anos. Foi um ano sem pílula até engravidar. Grávida, a felicidade foi plena, sensação maravilhosa de realização de sonho, andar nas nuvens, tudo lindo e brilhante. Até que começaram os enjoos. Não, não eram enjoos matinais. Eram 24 horas por dia tentando segurar o vômito. Para conseguir driblar o enjoo, entendi que deveria comer alguma coisa o tempo todo, a cada vez que o enjoo retornasse. Isso poderia variar o tempo e u estava comendo a cada hora, ou meia hora. Sempre que o enjoo voltava, eu comia mais um pouco. É claro que não comia qualquer coisa, a grande maioria das comidas me davam mais enjoo. Dava pra comer biscoito de polvilho, frutas mais firmes e frescas – jamais cremosas do tipo banana, abacate ou manga – e no almoço arroz com ovo ou macarrão na manteiga. Sim, o enjoo durou cerca de dois meses seguidos, sem trégua, nem pra dormir. Se eu acordasse às duas da manhã pra ir ao banheiro, tinha que comer alguma coisa pra distrair o estômago e ele não me perturbar.
Logo no início da gravidez, meu cabelo começou a crescer muito. Mil fios novos, curtinhos perto da cabeça, fazendo um volume muito estranho. O restante do cabelo, que sempre foi oleoso e fácil de cuidar, ficou ressecado, duro e mais enrolado. Comprei um milhão de cremes e me acertei com um sem enxague, pra domar a juba depois do banho. Teve também o fato de não poder pintar o cabelo. Já tinha lido por aí que é possível usar tonalizantes e achei que isso resolveria meus brancos precoces. Sim, mas não tinha a informação de que só é seguro depois de meados da gravidez e nos primeiros meses eu ficaria vendo uma grisalha no espelho. Dizem que depois que a criança nasce o cabelo cai bastante. Agora eu sei, estou preparada para isso, e até aguardando este momento de remover a peruca de Playmobil. Can’t wait!
Agora vamos para a pele. Desde que parei a pílula, minha pele já não estava mais a mesma. Ao engravidar, minha pele surtou, principalmente nas costas. Não tinha um pedaço de pele onde eu pudesse por a ponta de um dedo indicador que não tivesse uma espinha inflamada. Eram vulcões doloridos e coçava, porque a pele estava também muito ressecada. Fui a uma dermatologista e ela me recomendou um produto. Esperei o período permitido chegar para iniciar o tratamento e, ao longo de dois meses, já estava bem melhor, restando somente marcas escuras a cicatrizar.
Neste primeiro trimestre, tentei trabalhar o máximo que pude. Nunca esteve nos meus planos diminuir o ritmo de trabalho tão cedo, afinal nem barriga tinha pra atrapalhar, seria desculpa de preguiçosa, frescura e mimimi. É, mas quem consegue produzir estando o tempo todo com a sensação de ter comido cachorro quente estragado na praia?
Lá pela 14º semana, iniciando o quarto mês da gestação, minha vida melhorou muito. Senti que estava de novo energizada, e me animei para novos trabalhos. A workaholic aqui se iluminou, na possibilidade de exercer o que tanto gosta, trabalhar! Peguei um projeto que tinha feito um mês antes para revisar só um item e quando abri, tomei um susto daqueles! Havia um punhado de falhas, esquecimentos, coisas de quem produziu o que deu pra produzir na situação em que eu estava. Revisei tudo, alterei, ajeitei. Tudo certo, a revisão veio para o meu bem.
Senti que estava produtiva de novo, que liberdade, que maravilha! Uma barriga pesadinha na frente não é problema. E com 23 semanas, venho aqui hoje para escrever um texto lembrete a fim de que, no futuro, eu não me esqueça das questões do presente gestacional. Digo isso porque percebo claramente que meu cérebro não tem funcionado como normalmente e a memória instantânea está prejudicada. Desta forma, essa semana aconteceram coisas estranhas na minha vida.
Um dia estava trabalhando e começou a chover. Fui à janela fechar e por instantes não sabia o que fazer com a janela, não lembrava como funcionava o sistema de travamento. Depois de alguns segundos, me lembrei de que era só girar uma peça. Outro dia, pela manhã, estava fazendo um café. Perdi o pó de café. Procurei no armário, na prateleira, não achei. Quando desisti, olhei pra bancada e estava lá. Eu já havia colocado o pó na bancada antes, mas não me lembrava. Ontem fui preparar um jantar, coloquei a comida na travessa e cobri pra levar ao forno. Em vez de usar papel alumínio, usei filme de pvc e já ia colocar no forno quando pensei que aquilo ia dar errado, derreter tudo e emplastificar a comida. Troquei por papel alumínio e deu certo.
Hoje, tentando trabalhar e sem conseguir me concentrar, tentei o último dos recursos, que uso em momentos de desespero: rezar uma Ave Maria. Chegando à parte do “bendito é o fruto do vosso ventre” me distraí com o trava-línguas “fruto do ventre”, pensei no fruto do meu ventre e aí esqueci o resto do texto. Só me restou rir muito e alto, sozinha no escritório e parar pra escrever este texto.
Este está sendo o momento. Isto me gera medo, porque eu não estava preparada para ter a capacidade produtiva diminuída antes do nascimento do meu bebê. Não é mimimi e agora sei que muitas grávidas passam pro incômodos ainda maiores, como dores nas costas, varizes nas pernas, alergias, incontinência urinária e uma série de sintomas normais, fora aquelas que tem sérios problemas na gestação. Sei também que o último trimestre está batendo na minha porta e que o normal é ser a fase mais difícil. Estou preparada. Eu acho. Depois ainda temo puerpério.
Vejo que o último trimestre deve ser levado com cautela no que se refere a trabalho. O mais prudente seria não assumir nenhum compromisso irreversível pois, pela primeira vez na vida, meu corpo é absolutamente imprevisível e me controla. Aliás, tem o corpo de uma outra pessoa dentro do meu e isso é bem mais complexo do que parece.
Apenas preciso salientar que sou de touro e sou uma tora: grande, forte, lutadora. E pensar em um tempo produzindo menos, o que significa, para quem empreende, receber menos retorno financeiro, me dá calafrios. Estou fazendo todo o possível para não precisar de ajuda financeira do marido. É uma questão muito séria para mim, mas vejo que pode ser necessário, o que pode me requerer uma humildade a ser desenvolvida. Aceitar que não sou a mulher maravilha pode não ser nada fácil para uma pessoa que se constituiu como pessoa com forte a poio na profissão e na independência financeira, desde bem cedo na vida.
O que eu pretendo é registrar aqui estes incômodos para que, caso eu esqueça tudo isso como dizem que todas esquecem, eu tenha este texto como um post it. Quando eu vir meu fofuxo lindo sorrindo banguelo pra mim e tiver vontade de ter mais um, que eu me lembre de tudo isso e o faça com consciência, ou não faça, conforme achar melhor na época.

Vamos lá, para a próxima etapa. E a tal da maternidade é muito mais transformadora do que qualquer um possa imaginar. Ave Maria! Ah, parece que a palavra “ave” é uma saudação, que pode ser traduzida como Salve Maria! Não vou nem tecer mais comentários.

Minha experiência com a felicidade


Minha relação com a felicidade sempre foi um pouco nebulosa. Não é tão fácil assim reconhecer a felicidade. O lugar dela é ali, no espelho, diante do rosto inchado ao acordar, mas para identifica-la, é necessário compreendê-la.
                Fui uma criança feliz. Fui muito bem nutrida de amor pela minha família. Tive uma mãe incrível, que sempre foi e ainda é a rainha do tempo. Dava aula três turnos, mas foi inteiramente presente na minha vida e na do meu irmão, sabe-se lá como. É a melhor administradora de tempo que eu já conheci. Meu pai era muito carinhoso e meu irmão a pessoa mais companheira do mundo. Mas quando ouço aquela história de “ser criança é que é bom, eu era feliz e não sabia”, acho isso uma grande balela. As crianças têm muitas dificuldades, tanto quanto os adultos. Apenas agem naturalmente, com muita energia para aprender as tão complexas tarefas da vida. Aprender a comer sem espalhar a comida pelo chão não é fácil. Lembro claramente de, sentada à mesa de almoço, olhar os grãos de arroz no chão e pensar “até quando?”. Parar de fazer xixi na cama é muito difícil. A cada xixi foi uma decepção, uma tristeza de parecer que nunca estava pronta para tomar o controle do meu corpo. Aprender a escrever corretamente, a viver em sociedade, a se relacionar com os outros, a entender seus próprios limites, enfrentar os medos, aceitar desafios, isso tudo parece fácil depois que já passou. Na hora não é simples, mas não desintegra a felicidade, porque a gente quer vencer.
                Foi só entrar para a adolescência que a depressão começou a mostrar suas asinhas. Tendo o básico aprendido nesta fase, já com onze anos, faltava uma razão para existir. Comecei a entender um mundo a minha volta muito diferente de mim e muito cruel. Ao contrário do que mostrava minha família, que até então era o principal núcleo da minha vida, eu não era especial, as pessoas não me amavam, o mundo não precisava de mim e não fazia a menor questão da minha presença. Pelo contrário, eu dava trabalho a muita gente e despesas financeiras à minha família. Vazio, dor, angústia e a primeira experiência de me saber uma pessoa única no mundo, com toda a minha esquisitice. Inadequação, estranhamento, repulsa, introspecção, tristeza, solidão. Um corpo novo, absurdamente inapropriado, inconveniente e incômodo se instalava. Eu me sentia enorme, inflada como um balão, atrapalhando o funcionamento da cidade. O bichão da depressão já estava sentado na minha mesa.
Já tinha uma personalidade bem definida, mas descobri que o mundo não queria essa pessoa. O mundo queria que eu fosse meiga, fofa, sorridente, simpática, dançasse musiquinhas do rádio e soubesse rezar direitinho. Tentei muito ser assim para agradar o mundo. Era inútil. Tentei frequentar a igreja, mas era horrível. Sentia-me passando num moedor de carne, como no filme The wall. Lavagem cerebral não me pegava de jeito nenhum. Resisti bravamente a tudo, mas isso me corroeu. Aos treze anos tive uma úlcera gástrica, não dava pra engolir tudo isso sem me machucar. 
Via outras pessoas sendo felizes e tinha inveja. Muita gente me falava aquelas frases clássicas que todos que já tiveram depressão ouviram. “Anima, levanta, dá uma volta na rua, olha o sol, vai pra igreja, Jesus te ama, isso é rebeldia sem causa, aborrecência”. Sorte daqueles que tem a adolescência agradável, a minha não foi nem um pouco.  De vez em quando tentava umas empreitadas de felicidade, e nessas descobri que o álcool me dava alguns momentos de alegria. Passados estes momentos, a tristeza voltava com força total. Era inútil.
No último ano do colégio cheguei ao limite. Aquilo estava me deixando doente e eu tinha que tomar alguma atitude. Decidi desistir de contestar e iniciei a arte de rir daquilo que não se pode mudar. Esse é um aprendizado importantíssimo, mas para chegar até ele foram necessários alguns anos de sofrimento. Já era o primeiro sinal, mas ainda não sabia nesse tempo que a doença é parte da saúde. A crise é fundamental para a iniciativa da mudança.
A partir daí, não foi tão difícil mais e, entrando para a tão sonhada faculdade de arquitetura, minha função do mundo já estava dada. O drama da minha família, como a de muitas famílias brasileiras, de nunca conseguir ter uma casa, poderia ser compensado, construindo edifícios para o mundo, abrigando as pessoas e realizando os sonhos delas. Realizar sonhos era o meu sonho! Em seis meses de curso eu já estava morando sem meus pais, apenas com meu irmão parceiro de todos os momentos, estudando em uma universidade pública sem custo e me sustentando parcialmente. Enfim, todo o incômodo que causava, todo o trabalho que eu dava, estava bem minimizado. A partir desse momento, o foco era aprender tudo quanto pudesse para ser adulta e independente, uma pessoa de sucesso. Mergulhei de cabeça, coloquei toda minha energia naquilo e foi felicidade plena. Problemas financeiros eram muitos e por vezes paralisantes, mas o objetivo estava claro e a arte de rir de mim mesma já estava treinada.  Foi nessa hora que ficou muito cristalino o fato de que a felicidade passa longe, a quilômetros de distância da realização financeira. Sucesso financeiro é ótimo, mas é um item de alegria, não é felicidade. Traz tranquilidade para seguir em frente, mas é possível passar dificuldades financeiras com felicidade, basta saber traçar um plano pra sair da dificuldade e ir atrás dele. Assim, todos os percalços do trajeto até a solução ganham significado e valem a pena.
Mas uma hora a faculdade acaba, a gente forma e cai no mercado de trabalho.  Neste momento eu já era financeiramente independente, não dava mais trabalho e já até ajudava a família em alguma coisa. A angústia da falta de função no mundo e de ser um peso para a família estava exterminada. Mas eu sabia que a luta pela vida só estava começando. Não bastava ter profissão, eu tinha que ter sucesso, tinha que trabalhar muito, o máximo que pudesse, tinha que ter dinheiro, conhecer o mundo e disfrutar da juventude. Foi aí que eu me enganei. Ter um milhão de amigos, trabalhar 16 horas por dia, estar em todas as baladas da cidade, isso não é felicidade. Isso é histeria. Mas eu ainda não sabia e achava que tinha a obrigação de ser muito feliz, viver intensamente, virar o pescoço pra trás de tanto rir.
E foi assim que os amigos foram se distanciando. Cada um por seu motivo, creio que se concentrando na sua vida profissional e pessoal e caminhando. E tive que encarar a minha solidão mais uma vez. Percebi que ter amigos, ter família, ser rodeado de pessoas é muito bom, mas elas estão do lado de fora. Dentro, todo mundo é sozinho e nu. Ninguém pode resolver os problemas, a não ser essa solidão despida que aparece no espelho pela manhã. E foi aí que o bichão voltou a sentar na minha mesa.
Mas dessa vez eu tinha uma vantagem. Quando olhei pra cara do bicho reconheci a pelagem densa e marrom. Era ele mesmo. Procurei todos os caminhos para mandá-lo embora e, depois de diversas tentativas diferentes, consegui. Ele é danado, mas eu sou mais. E mais uma vez, a doença é parte da saúde e a crise é fundamental para transformar o pensamento e integrar os objetivos da vida. Com novos objetivos, tudo é limpo e todas as chances de vencer estão adiante. Tem cheiro de caderno novo, pronto pra receber história. E só tem uma pessoa apta a escrever.