Minha relação com a felicidade
sempre foi um pouco nebulosa. Não é tão fácil assim reconhecer a felicidade. O
lugar dela é ali, no espelho, diante do rosto inchado ao acordar, mas para
identifica-la, é necessário compreendê-la.
Fui
uma criança feliz. Fui muito bem nutrida de amor pela minha família. Tive uma
mãe incrível, que sempre foi e ainda é a rainha do tempo. Dava aula três
turnos, mas foi inteiramente presente na minha vida e na do meu irmão, sabe-se
lá como. É a melhor administradora de tempo que eu já conheci. Meu pai era
muito carinhoso e meu irmão a pessoa mais companheira do mundo. Mas quando ouço
aquela história de “ser criança é que é bom, eu era feliz e não sabia”, acho
isso uma grande balela. As crianças têm muitas dificuldades, tanto quanto os
adultos. Apenas agem naturalmente, com muita energia para aprender as tão
complexas tarefas da vida. Aprender a comer sem espalhar a comida pelo chão não
é fácil. Lembro claramente de, sentada à mesa de almoço, olhar os grãos de
arroz no chão e pensar “até quando?”. Parar de fazer xixi na cama é muito
difícil. A cada xixi foi uma decepção, uma tristeza de parecer que nunca estava
pronta para tomar o controle do meu corpo. Aprender a escrever corretamente, a
viver em sociedade, a se relacionar com os outros, a entender seus próprios
limites, enfrentar os medos, aceitar desafios, isso tudo parece fácil depois
que já passou. Na hora não é simples, mas não desintegra a felicidade, porque a
gente quer vencer.
Foi
só entrar para a adolescência que a depressão começou a mostrar suas asinhas.
Tendo o básico aprendido nesta fase, já com onze anos, faltava uma razão para
existir. Comecei a entender um mundo a minha volta muito diferente de mim e
muito cruel. Ao contrário do que mostrava minha família, que até então era o
principal núcleo da minha vida, eu não era especial, as pessoas não me amavam,
o mundo não precisava de mim e não fazia a menor questão da minha presença. Pelo
contrário, eu dava trabalho a muita gente e despesas financeiras à minha
família. Vazio, dor, angústia e a primeira experiência de me saber uma pessoa
única no mundo, com toda a minha esquisitice. Inadequação, estranhamento, repulsa,
introspecção, tristeza, solidão. Um corpo novo, absurdamente inapropriado,
inconveniente e incômodo se instalava. Eu me sentia enorme, inflada como um
balão, atrapalhando o funcionamento da cidade. O bichão da depressão já estava
sentado na minha mesa.
Já tinha uma
personalidade bem definida, mas descobri que o mundo não queria essa pessoa. O
mundo queria que eu fosse meiga, fofa, sorridente, simpática, dançasse
musiquinhas do rádio e soubesse rezar direitinho. Tentei muito ser assim para
agradar o mundo. Era inútil. Tentei frequentar a igreja, mas era horrível.
Sentia-me passando num moedor de carne, como no filme The wall. Lavagem
cerebral não me pegava de jeito nenhum. Resisti bravamente a tudo, mas isso me
corroeu. Aos treze anos tive uma úlcera gástrica, não dava pra engolir tudo
isso sem me machucar.
Via outras
pessoas sendo felizes e tinha inveja. Muita gente me falava aquelas frases
clássicas que todos que já tiveram depressão ouviram. “Anima, levanta, dá uma
volta na rua, olha o sol, vai pra igreja, Jesus te ama, isso é rebeldia sem
causa, aborrecência”. Sorte daqueles que tem a adolescência agradável, a minha
não foi nem um pouco. De vez em quando
tentava umas empreitadas de felicidade, e nessas descobri que o álcool me dava
alguns momentos de alegria. Passados estes momentos, a tristeza voltava com
força total. Era inútil.
No último ano
do colégio cheguei ao limite. Aquilo estava me deixando doente e eu tinha que
tomar alguma atitude. Decidi desistir de contestar e iniciei a arte de rir daquilo
que não se pode mudar. Esse é um aprendizado importantíssimo, mas para chegar
até ele foram necessários alguns anos de sofrimento. Já era o primeiro sinal,
mas ainda não sabia nesse tempo que a doença é parte da saúde. A crise é
fundamental para a iniciativa da mudança.
A partir daí,
não foi tão difícil mais e, entrando para a tão sonhada faculdade de
arquitetura, minha função do mundo já estava dada. O drama da minha família,
como a de muitas famílias brasileiras, de nunca conseguir ter uma casa, poderia
ser compensado, construindo edifícios para o mundo, abrigando as pessoas e
realizando os sonhos delas. Realizar sonhos era o meu sonho! Em seis meses de
curso eu já estava morando sem meus pais, apenas com meu irmão parceiro de
todos os momentos, estudando em uma universidade pública sem custo e me
sustentando parcialmente. Enfim, todo o incômodo que causava, todo o trabalho
que eu dava, estava bem minimizado. A partir desse momento, o foco era aprender
tudo quanto pudesse para ser adulta e independente, uma pessoa de sucesso.
Mergulhei de cabeça, coloquei toda minha energia naquilo e foi felicidade
plena. Problemas financeiros eram muitos e por vezes paralisantes, mas o
objetivo estava claro e a arte de rir de mim mesma já estava treinada. Foi nessa hora que ficou muito cristalino o
fato de que a felicidade passa longe, a quilômetros de distância da realização
financeira. Sucesso financeiro é ótimo, mas é um item de alegria, não é
felicidade. Traz tranquilidade para seguir em frente, mas é possível passar
dificuldades financeiras com felicidade, basta saber traçar um plano pra sair
da dificuldade e ir atrás dele. Assim, todos os percalços do trajeto até a
solução ganham significado e valem a pena.
Mas uma hora a
faculdade acaba, a gente forma e cai no mercado de trabalho. Neste momento eu já era financeiramente
independente, não dava mais trabalho e já até ajudava a família em alguma
coisa. A angústia da falta de função no mundo e de ser um peso para a família
estava exterminada. Mas eu sabia que a luta pela vida só estava começando. Não
bastava ter profissão, eu tinha que ter sucesso, tinha que trabalhar muito, o
máximo que pudesse, tinha que ter dinheiro, conhecer o mundo e disfrutar da
juventude. Foi aí que eu me enganei. Ter um milhão de amigos, trabalhar 16
horas por dia, estar em todas as baladas da cidade, isso não é felicidade. Isso
é histeria. Mas eu ainda não sabia e achava que tinha a obrigação de ser muito
feliz, viver intensamente, virar o pescoço pra trás de tanto rir.
E foi assim
que os amigos foram se distanciando. Cada um por seu motivo, creio que se
concentrando na sua vida profissional e pessoal e caminhando. E tive que
encarar a minha solidão mais uma vez. Percebi que ter amigos, ter família, ser
rodeado de pessoas é muito bom, mas elas estão do lado de fora. Dentro, todo
mundo é sozinho e nu. Ninguém pode resolver os problemas, a não ser essa
solidão despida que aparece no espelho pela manhã. E foi aí que o bichão voltou
a sentar na minha mesa.
Mas dessa vez
eu tinha uma vantagem. Quando olhei pra cara do bicho reconheci a pelagem densa
e marrom. Era ele mesmo. Procurei todos os caminhos para mandá-lo embora e,
depois de diversas tentativas diferentes, consegui. Ele é danado, mas eu sou
mais. E mais uma vez, a doença é parte da saúde e a crise é fundamental para
transformar o pensamento e integrar os objetivos da vida. Com novos objetivos,
tudo é limpo e todas as chances de vencer estão adiante. Tem cheiro de caderno
novo, pronto pra receber história. E só tem uma pessoa apta a escrever.
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