quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Minha experiência com a felicidade


Minha relação com a felicidade sempre foi um pouco nebulosa. Não é tão fácil assim reconhecer a felicidade. O lugar dela é ali, no espelho, diante do rosto inchado ao acordar, mas para identifica-la, é necessário compreendê-la.
                Fui uma criança feliz. Fui muito bem nutrida de amor pela minha família. Tive uma mãe incrível, que sempre foi e ainda é a rainha do tempo. Dava aula três turnos, mas foi inteiramente presente na minha vida e na do meu irmão, sabe-se lá como. É a melhor administradora de tempo que eu já conheci. Meu pai era muito carinhoso e meu irmão a pessoa mais companheira do mundo. Mas quando ouço aquela história de “ser criança é que é bom, eu era feliz e não sabia”, acho isso uma grande balela. As crianças têm muitas dificuldades, tanto quanto os adultos. Apenas agem naturalmente, com muita energia para aprender as tão complexas tarefas da vida. Aprender a comer sem espalhar a comida pelo chão não é fácil. Lembro claramente de, sentada à mesa de almoço, olhar os grãos de arroz no chão e pensar “até quando?”. Parar de fazer xixi na cama é muito difícil. A cada xixi foi uma decepção, uma tristeza de parecer que nunca estava pronta para tomar o controle do meu corpo. Aprender a escrever corretamente, a viver em sociedade, a se relacionar com os outros, a entender seus próprios limites, enfrentar os medos, aceitar desafios, isso tudo parece fácil depois que já passou. Na hora não é simples, mas não desintegra a felicidade, porque a gente quer vencer.
                Foi só entrar para a adolescência que a depressão começou a mostrar suas asinhas. Tendo o básico aprendido nesta fase, já com onze anos, faltava uma razão para existir. Comecei a entender um mundo a minha volta muito diferente de mim e muito cruel. Ao contrário do que mostrava minha família, que até então era o principal núcleo da minha vida, eu não era especial, as pessoas não me amavam, o mundo não precisava de mim e não fazia a menor questão da minha presença. Pelo contrário, eu dava trabalho a muita gente e despesas financeiras à minha família. Vazio, dor, angústia e a primeira experiência de me saber uma pessoa única no mundo, com toda a minha esquisitice. Inadequação, estranhamento, repulsa, introspecção, tristeza, solidão. Um corpo novo, absurdamente inapropriado, inconveniente e incômodo se instalava. Eu me sentia enorme, inflada como um balão, atrapalhando o funcionamento da cidade. O bichão da depressão já estava sentado na minha mesa.
Já tinha uma personalidade bem definida, mas descobri que o mundo não queria essa pessoa. O mundo queria que eu fosse meiga, fofa, sorridente, simpática, dançasse musiquinhas do rádio e soubesse rezar direitinho. Tentei muito ser assim para agradar o mundo. Era inútil. Tentei frequentar a igreja, mas era horrível. Sentia-me passando num moedor de carne, como no filme The wall. Lavagem cerebral não me pegava de jeito nenhum. Resisti bravamente a tudo, mas isso me corroeu. Aos treze anos tive uma úlcera gástrica, não dava pra engolir tudo isso sem me machucar. 
Via outras pessoas sendo felizes e tinha inveja. Muita gente me falava aquelas frases clássicas que todos que já tiveram depressão ouviram. “Anima, levanta, dá uma volta na rua, olha o sol, vai pra igreja, Jesus te ama, isso é rebeldia sem causa, aborrecência”. Sorte daqueles que tem a adolescência agradável, a minha não foi nem um pouco.  De vez em quando tentava umas empreitadas de felicidade, e nessas descobri que o álcool me dava alguns momentos de alegria. Passados estes momentos, a tristeza voltava com força total. Era inútil.
No último ano do colégio cheguei ao limite. Aquilo estava me deixando doente e eu tinha que tomar alguma atitude. Decidi desistir de contestar e iniciei a arte de rir daquilo que não se pode mudar. Esse é um aprendizado importantíssimo, mas para chegar até ele foram necessários alguns anos de sofrimento. Já era o primeiro sinal, mas ainda não sabia nesse tempo que a doença é parte da saúde. A crise é fundamental para a iniciativa da mudança.
A partir daí, não foi tão difícil mais e, entrando para a tão sonhada faculdade de arquitetura, minha função do mundo já estava dada. O drama da minha família, como a de muitas famílias brasileiras, de nunca conseguir ter uma casa, poderia ser compensado, construindo edifícios para o mundo, abrigando as pessoas e realizando os sonhos delas. Realizar sonhos era o meu sonho! Em seis meses de curso eu já estava morando sem meus pais, apenas com meu irmão parceiro de todos os momentos, estudando em uma universidade pública sem custo e me sustentando parcialmente. Enfim, todo o incômodo que causava, todo o trabalho que eu dava, estava bem minimizado. A partir desse momento, o foco era aprender tudo quanto pudesse para ser adulta e independente, uma pessoa de sucesso. Mergulhei de cabeça, coloquei toda minha energia naquilo e foi felicidade plena. Problemas financeiros eram muitos e por vezes paralisantes, mas o objetivo estava claro e a arte de rir de mim mesma já estava treinada.  Foi nessa hora que ficou muito cristalino o fato de que a felicidade passa longe, a quilômetros de distância da realização financeira. Sucesso financeiro é ótimo, mas é um item de alegria, não é felicidade. Traz tranquilidade para seguir em frente, mas é possível passar dificuldades financeiras com felicidade, basta saber traçar um plano pra sair da dificuldade e ir atrás dele. Assim, todos os percalços do trajeto até a solução ganham significado e valem a pena.
Mas uma hora a faculdade acaba, a gente forma e cai no mercado de trabalho.  Neste momento eu já era financeiramente independente, não dava mais trabalho e já até ajudava a família em alguma coisa. A angústia da falta de função no mundo e de ser um peso para a família estava exterminada. Mas eu sabia que a luta pela vida só estava começando. Não bastava ter profissão, eu tinha que ter sucesso, tinha que trabalhar muito, o máximo que pudesse, tinha que ter dinheiro, conhecer o mundo e disfrutar da juventude. Foi aí que eu me enganei. Ter um milhão de amigos, trabalhar 16 horas por dia, estar em todas as baladas da cidade, isso não é felicidade. Isso é histeria. Mas eu ainda não sabia e achava que tinha a obrigação de ser muito feliz, viver intensamente, virar o pescoço pra trás de tanto rir.
E foi assim que os amigos foram se distanciando. Cada um por seu motivo, creio que se concentrando na sua vida profissional e pessoal e caminhando. E tive que encarar a minha solidão mais uma vez. Percebi que ter amigos, ter família, ser rodeado de pessoas é muito bom, mas elas estão do lado de fora. Dentro, todo mundo é sozinho e nu. Ninguém pode resolver os problemas, a não ser essa solidão despida que aparece no espelho pela manhã. E foi aí que o bichão voltou a sentar na minha mesa.
Mas dessa vez eu tinha uma vantagem. Quando olhei pra cara do bicho reconheci a pelagem densa e marrom. Era ele mesmo. Procurei todos os caminhos para mandá-lo embora e, depois de diversas tentativas diferentes, consegui. Ele é danado, mas eu sou mais. E mais uma vez, a doença é parte da saúde e a crise é fundamental para transformar o pensamento e integrar os objetivos da vida. Com novos objetivos, tudo é limpo e todas as chances de vencer estão adiante. Tem cheiro de caderno novo, pronto pra receber história. E só tem uma pessoa apta a escrever.

Nenhum comentário:

Postar um comentário